Natal e sua (suposta falta de) Identidade Cultural
Uma releitura crítica da dissertação: Entre a ausência declarada e a presença reclamada: a identidade potiguar em questão (2010).[1]
Marcelo Bolshaw Gomes[2]
1. A cidade presépio: (vir a) ser ou não ser
Uma releitura é mais do que uma mera resenha, pois não se trata apenas de resumir, mas também de comentar, destacar, comparar, criticar. Trata-se aqui, portanto, de uma reinterpretação da dissertação de mestrado de João Maurício (GOMES NETO, 2010) sobre o curioso fato da identidade cultural da cidade do Natal, capital do Rio Grande do Norte, ser considerada, pelo senso comum e pela intelectualidade local, inautêntica e artificial. A ‘falta de identidade cultural’ é naturalizada pela cultura natalense, com a reclamação recorrente de que a cidade só valoriza o que vem de fora e que os artistas e intelectuais natalenses nunca são reconhecidos pelos seus conterrâneos, não importa quão talentosos sejam.
Embora se pretenda fazer análise discursiva, o procedimento básico da investigação é histórico/historiográfico, através de pesquisa bibliográfica. Aliás, o trabalho de Gomes Neto não é propriamente histórico, mas sim temático, isto é: ao invés de investigar o processo histórico como um todo contínuo, ele analisa um aspecto social como uma sobreposição de simultaneidades recorrentes.
Tomando as discussões sobre o potiguar como recorte temático, a presente pesquisa busca problematizar os deslocamentos, os impasses nas suas representações, as quais, via de regra, costumam apresentá-lo como um ser que não é, constantemente seduzido pelos encantos do outro, pelos valores que vêm de fora de suas fronteiras. (GOMES NETO, 2010, pág. 10)
Além de uma revisão bibliográfica completa sobre a identidade da cidade (cujos títulos classificamos e destacamos a seguir), Gomes Neto faz também uma investigação em fontes contemporâneas: blogs, entrevistas e textos dos agentes culturais da cidade atual sobre “a falta de identidade natalense”. Há falas de vários intelectuais e artistas da cidade polarizados entre os que consideram a ‘falta de identidade’ uma atitude colonizada e os que defendem que ela expressa uma atitude cosmopolita.
O potiguar transita assim num espaço indefinido. É, segundo alguns interlocutores, um espaço fadado a um devir que é sempre devir, que nunca se cumpre; é sempre o que deveria ser em detrimento do que é, pois o ser que ele é desagrada. Percebe-se aqui um dilema nas suas representações: reclama-se com frequência da abertura, da sedução ao que vem de fora de suas fronteiras, pois esta postura age de forma tal que o impediria de criar laços identitários com as coisas da terra, com os valores genuinamente locais. Em outras palavras, deve existir um modo de ser, um ethos que, devido ao desapego dos norte-rio-grandenses, não se faz ver nem ouvir. É como se, enfeitiçados pelo outro, recusassem a si mesmos. Seriam estrangeiros em sua própria terra. (2010, 47)
Surgem, então dois discursos gêmeos:
1) A “cidade presépio” é aquela que está sempre nascendo, sua identidade está sempre porvir, sua cultura está voltada para o futuro; e
2) Natal é um caso crônico de uma cultura descaracterizada, sem raízes, ela não se reconhece como parte de uma comunidade de pertencimento – como João Pessoa, a capital vizinha, e as cidades de Caicó e Mossoró – que têm identidades regionais fortes e são constantemente comparadas, tanto positiva como negativamente, com Natal.
2. ‘Não há tal’ e o RN como corpo sem cabeça
Também é lugar comum dizer que a principal causa histórica dessa supervalorização do estrangeiro/auto depreciação do natalense é resultante da presença dos americanos em Parnamirim, durante a guerra. Segundo essa explicação, a admiração dos natalenses pelos EUA tornou-se uma ‘recorrência cultural’ e isto levou a desvalorização crônica da própria cultura. E um dos méritos do Gomes Neto é justamente – seguindo os trabalhos mais recentes[3] – demonstrar com fatos e fontes consistentes que, em Natal, a supervalorização dos estrangeiros e a subvalorização dos conterrâneos é anterior aos anos 40 e a presença dos americanos.
Natal foi fundada no natal de 1599[4] e passou quase um século e meio sendo o único município da capitania do Rio Grande. Praticamente só se chegava de navio, não havia estradas e local era comprimido entre o rio, o mar e as dunas, que constantemente ameaçavam cobrir a cidade. Imaginem nesse contexto uma comunidade em que os visitantes/novidades eram sempre acolhidos com alegria e que os moradores se boicotavam uns aos outros, disputando oportunidades e vantagens cartoriais entre si (concessões de venda e representações comerciais).
Este padrão cultural de rivalidade interna e valorização externa perdurou durante 300 anos, até a abertura efetiva de estradas e ferrovias em 1915. No século XVII, chegava-se a Mossoró por Aracati no Ceará e a Caicó por Campina Grande na Paraíba (CASCUDO, 1984: 309 Apud GOMES NETO, 107).
Tabela do crescimento populacional de Natal e do RN
Ano
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População de Natal
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População do RN
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1805
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6.393
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49.250
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1808
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5.919
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1844
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6.454
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149.072
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1855
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+ ou – 160 mil
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1870
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8.909
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233.979
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Fonte: GOMES NETO, 2010, 99.
A colonização do sertão se deu através de outros estados – não apenas através de mercadorias no comércio (a produção do interior era drenada para outros portos), mas também através da circulação das informação (jornais, correspondência, pessoas) – teve como resultado o desenvolvimento da região Oeste e do Seridó[5]. E enquanto a capital permanecia pequena e isolada, um entreposto do comércio pernambucano. Desta situação de atraso surgiram várias frases repetidas por diferentes comentaristas ao longo de séculos: ‘cidade só no nome’; o ‘corpo sem cabeça’; ‘Tal não há’.
Gomes Neto detalha três momentos históricos marcantes que reforçaram essa ‘não-identidade’ na formação da cultura natalense: os heróis derrotados, Felipe Camarão e André de Albuquerque; os intelectuais futuristas, Eloy de Souza e Manoel Dantas; e as oligarquias rurais pretensamente progressistas em relação à modernidade.
O índio Poti é um personagem-símbolo da submissão dos índios potiguaras aos portugueses e da expulsão dos holandeses. Os potiguaras eram antropófagos, haviam devorado dois filhos de João de Barros, primeiro governador da capitânia. Foram pacificados graças a Jerônimo de Albuquerque (o filho), que era Potiguar por parte de mãe.Depois de lutar ao lado dos colonos pela expulsão dos holandeses, anos depois, seu líder, Poti foi batizado Antônio Felipe Camarão, sendo alçado à condição de herói. Camarão representava um nativo fiel à Coroa portuguesa, convertido ao cristianismo. Era a vitória não apenas sobre os holandeses, mas da colonização portuguesa através de uma identidade local. Ao mesmo tempo que se construiu uma narrativa heroica e cívica sobre o personagem, o termo ‘potiguar’ (comedor de camarão), referência à tribo a que Poti pertencia, tornou-se sinônimo de norte-rio-grandense.
Gomes Neto considera a antropofagia uma violência simbólica, um rito de destruição de alteridade, decorrente da “dificuldade em aceitar o outro” e não como a incorporação honrosa das qualidades do outro em si mesmo – como Oswald de Andrade e a antropologia[6]. Para ele, o personagem do Índio Poti/Felipe Camarão é uma “inversão de papeis entre agente e paciente da ação” dos rituais antropofágicos dos potiguares.
Neste sentido, quando deglute os valores culturais adventícios, o potiguar não eliminaria a existência do outro, como outrora fazia. Ele, nesse processo, contraditoriamente, eliminaria a si mesmo. Em outras palavras, ao levar a cabo esse novo “rito canibal”, passou de agente a paciente da ação. Assim, toda vez que se abre aos “valores culturais” do outro, em detrimento daqueles que supostamente seriam dos seus, ele se imiscui ao adventício, negando a si mesmo.
O curioso nesse processo é que, para conseguir sobreviver, os poucos índios potiguar que restaram à empreitada colonizadora branca tiveram de fazer o rito inverso da antropofagia, ou seja, desfizeram-se de seus valores culturais e “deglutiram” os modos de vida europeus, para terem assegurado o direito de continuar existindo. (…)
Assim, quando, na contemporaneidade, multiplicam-se os discursos que reclamam uma identidade ao potiguar, sob o argumento de que estes valoram em demasia tudo que vem de fora de suas fronteiras, não mostrando apego por suas cultura e história, é como se acusassem a repetição do ritual antropofágico, só que na condição de pacientes no processo, não mais como agentes. (…)
Seriam os potiguares hodiernos também canibais, a exemplo de seus antepassados? Teriam eles legado o desejo de fazer do adventício seu alimento? Num processo menos sanguinolento que o de outrora, é como se cumprissem certa predestinação à antropofagia, dispostos a deglutir aquilo que adentra suas fronteiras. De um canibalismo que pressupunha a recusa e destruição do outro, a uma antropofagia que parece esquecer-se de si pelo encantamento ao novo, pelos valores de fora. De entrave à obra civilizatória portuguesa a ente conivente com as “interferências” culturais de outras plagas.
E, desta maneira, foram se somando as narrativas que situam na interrogação, no campo da dúvida, a existência da identidade potiguar. (GOMES NETO, 2010, 56-57)
Essa inversão simbólica da antropofagia arcaica em submissão voluntária moderna é operada por Alberto Maranhão, no perfil biográfico (na verdade, apologia heroica) de Felipe Camarão, feita para combater o escritor cearense José de Alencar e os historiadores paraibanos e pernambucanos que queriam usurpar o herói potiguar, afirmando que ele não teria nascido no Rio Grande (2010, 90).
Outro episódio histórico de reforço da subjetividade cultural potiguar se deu por ocasião da revolução de 1817. André de Albuquerque, senhor do engenho de Cunhaú e governador da provincial do Rio Grande, resolve aderir ao levante pernambucano, liderado por outro Potiguar, Frei Miguelino, contra a Coroa portuguesa. Porém, o nobre é traído por seus aliados conterrâneos e morto com requintes de crueldade na Fortaleza dos Reis Magos.
Embora alguns historiadores enalteçam a luta pela liberdade civil, pela autonomia regional e o sacrifício do mártir republicano (tais como Manoel Ferreira Nobre, Tavares de Lyra); outros (como Cascudo, Rocha Pombo) ressaltam a punição do rebelado e colocam a adesão do RN à revolução de 1817 como uma travessura “inútil” de um oligarquia idealista. Acrescente-se a isso, a forma como a revolução de 1817 é hoje ensinada em sala de aula e pelo senso comum em geral. Reforça-se, assim, a ideia do déficit identitário, baseada na obediência ao exterior e no arrivismo interno, sempre disposto a destruir os que se destacam e/ou tentam empreender mudanças.
Uma Identidade Cultural é feita de memória coletiva (de seus heróis, vítimas e inimigos) mas também de esquecimento e omissões. Lembramos de Felipe Camarão para esquecer escravidão ‘voluntária’ dos potiguares e tabajaras nos primeiros engenhos; lembramos dos mártires de Cunhaú e Uruaçu[7] para esconder o genocídio indígena da confederação dos Cariris[8]. E Gomes Neto analisa os principais historiadores do RN, no período colonial e no império, sempre destacando a necessidade de produção de uma identidade, ora artificial e cívica, ora crítica e inexistente.
3. A província cosmopolita
O certo é que, em 1898, Natal já sofria deste encantamento pelo outro que até hoje a caracteriza. Polycarpo Feitosa[9], em crônica publicada no ano de 1898, sob o título de Vida potiguar, fala do suposto bairrismo potiguar:
“Por índole, por educação ou pelo que for, não há alguém mais apreciador do que é de fora, pessoa ou coisa estrangeira, e, como consequência mais depreciador do que é da terra, que ele.” (FEITOSA, 2007: 31 Apud GOMES NETO, 122).
No começo do século XX, após três séculos de estagnação, as elites potiguares tinha fome de modernidade e a sonhavam com entusiasmo. Duas conferências proferidas em 1909 por Eloy de Souza (Costumes Locais) e Manoel Dantas (Natal daqui a cinquenta anos), constroem representações projetando o futuro da cidade. Essa representação expressam o desejo de desenvolvimento social em todos os sentidos.
Eloy de Souza fala sobre a ‘província cosmopolita’ e o processo histórico de transformações econômicas, políticas e sociais que se aproximavam para cidade com a modernidade. Já Manoel Dantas sonha abertamente com o futuro, em uma narrativa imaginativa e intertextual, misturando suas esperanças reais de desenvolvimento com narrativas de ficção, humor e poesia mitológica.
Manoel Dantas é um personagem singular nesse contexto: um sertanejo com sede de modernidade. E é aqui que se evidencia a aporia apresentada por Tarcísio Gurgel, o qual situa Dantas entre a tradição e a vanguarda. (GOMES NETO, 62).
Além de sonhar o futuro, Dantas também poetize o passado, escrevendo o Auto de fundação da cidade do Natal por Jerônimo de Albuquerque. A cidade “escolhida para dar louvor ao Salvador” também foi amaldiçoada: as dunas, os “ciclopes de areia” na narrativa mítico-poética de Dantas, continuavam ameaçando, mantendo-a em castigo no isolamento, sob o constante risco de ser “soterrada” pele areia[10].
Outro aspecto evidente da forma como as elites rurais do RN aspiravam com paixão por modernidade na primeira metade do século XX, valorizando o externo e diminuindo o local, é o comportamento pretensamente moderno dos governantes. Esse comportamento pode ser observado tanto na oligarquia Albuquerque Maranhão como no governador Juvenal Lamartine, representante das oligarquias do Seridó, que governou o estado de 1928 até a ser deposto pela revolução de 1930.
Do começo do século passado até 1928, o Rio Grande do Norte foi governado pela mesma oligarquia do fundador da cidade (Jerônimo de Albuquerque) e do principal mártir da revolução de 1817 (André Albuquerque): Pedro Velho (primeiro governador republicano em 1889 e duas outras vezes em 90 e 92); Alberto Maranhão em 1895 e em 1908; Tavares de Lyra; entre outros. Apesar formarem uma oligarquia rural esses homens foram republicanos extremamente cultos, sendo responsáveis pela construção da principal narrativa historiográfica de nossa identidade cultural arcaica.
Há também a versão contra hegemônica de Rocha Pombo, simpatizante das oligarquias do Seridó e da vida sertaneja como ‘identidade estadual do RN’. Rocha Pombo discorda da data de fundação de Natal e minimiza o sacrifício republicano de André de Albuquerque, tentando diminuir o papel da família Albuquerque Maranhão na história do RN.
As elites seridoenses (vinculadas à pecuária e ao cultivo do algodão) que sucederam a dinastia Albuquerque Maranhão eram tão modernas quanto às natalenses. Os governadores Antônio José de Melo e Sousa (Polycarpo Feitosa) e José Augusto Medeiros (que governaram de 1921 a 1927) também eram homens doutos modernos.
O governador Juvenal Lamartine de Faria (que governou de 1928 até ser deposto pela revolução de 30) também é frequentemente descrito como visionário, vanguardista e até feminista, responsável pelo voto feminino e a efetiva inclusão participativa da mulher na política. Juvenal Lamartine também é apresentado como um pioneiro da aviação civil no estado, com a construção de mais de 20 pistas de pouso no interior do estado, além de fundador do Aeroclube de Natal.
Tanta modernidade era combinada com uma submissão canina ao governo federal e à repressão implacável aos que lhes fizeram oposição. Durante o governo de Juvenal Lamartine os espancamentos, prisões e invasões a sindicatos e jornais pela polícia eram frequentes. Enquanto posava de feminista a nível nacional, Lamartine perseguia Sandoval Wanderley e Café Filho (GOMES NETO, 2010, 141).
Aliás, a revolução de 1930 e o levante comunista de 1937 em Natal – não estudados por Gomes Neto em relação à identidade natalense (ou sua ausência) – vão aprofundar ainda mais a sede de modernidade da cidade.
Livros clássicos sobre a cidade do Natal estudados por Gomes Neto (2010)
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CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal. (1955) Natal: RN Econômico, 1999.
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DANTAS, Manoel. Homens de outrora. Natal/RN: Sebo Vermelho edições, 2001.
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FEITOSA, Polycarpo. Vida potiguar. Natal: Sebo Vermelho Edições, 2007.
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GÓES, Moacyr de. Entre o rio o mar. Rio de Janeiro: Revan, 1996.
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JORGE, Franklin. Spleen de Natal. Natal: Amarela entretenimentos, 1996.
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LIMA, Pedro de. O mito da fundação de Natal e a construção da cidade moderna segundo Manoel Dantas. Natal: Cooperativa Cultural; Sebo Vermelho, 2000.
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MELO, Veríssimo de. Natal há 100 anos passados. Natal/RN: Sebo Vermelho edições, 2007.
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MELO, João Wilson. A cidade e o trampolim. Natal: Grafpar – Gráfica e Editora, 1999.
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MELO, Paulo de Tarso Correia de. Natal: secreta biografia. Fundação José Augusto, 1994.
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NUNES, Raimundo Nonato. Sociologia do Grande Ponto. João Pessoa: [s.n.], 1985.
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ONOFRE JR, Manoel. Breviário da cidade do Natal. Natal: Clima, 1984.
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SOUZA, Eloy de. Costumes Locais. Natal/RN: Ed. Sebo Vermelho; Verbo Idéias e ofícios, 1999.
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4. A encruzilhada do mundo
Então, quando os americanos chegaram para estabelecer uma base área em Parnamirim, Natal já tinha apreço pelo estrangeiro e baixa estima pelo próprio. Mas, isso não diminuiu o impacto da presença americana, que transformou uma ‘fazenda iluminada’ na encruzilhada do mundo.
Três grandes caminhos aéreos convergem para Natal: do Norte procedente do Amazonas e dos Estados Unidos; do leste, procedente da África, da Europa e do Médio e do Extremo Oriente; e do Sul, procedente do Rio, das Repúblicas platinas e outras sul-americanas. Sob esse aspecto, Natal é, talvez, atualmente, a mais importante encruzilhada do mundo […].
Viajantes de todos os pontos do mundo chegam diariamente a Natal, há muito tempo. Aqui, estiveram presentes Getúlio Vargas, o presidente Roosevelt, o primeiro ministro Churchill, o Sr. Wendell Wilkie, a Sra. Chiang-Kai-Shek, a Sra. Eleonor Roosevelt. Por aqui tem passado embaixadores e representantes diplomáticos de quase todos os países: turcos, mulçumanos, suíços, australianos. Muitos deles são jornalistas ou escritores, que andam anotando, comentando e comprando, e que mais tarde desejarão prestar depoimento sobre essas viagens – o que eles dirão do Brasil? É esta a nossa preocupação. Muitos viram senão esta pequena e risonha cidade do Natal. (NATAL, ENCRUZILHADA DO MUNDO apud OLIVEIRA, 2008: 212- 213 apud GOMES NETO, 2010, 77)
Algumas autobiografias afirmam que a presença estadunidense acabou com as tradições locais, com hábitos e costumes que influenciaram no modo como o RN se relaciona com seus bens culturais. Para esses, o imperialismo cultural dos EUA transformou a cidade em uma ‘Londres nordestina’: a população local mimetizou hábitos alimentares (consumo de enlatados, da goma de mascar, da Coca-Cola), dança e música, gestos, modos de vestir e falar dos americanos.
Segundo essas análises, o potiguar perdeu grande parte de seus referenciais identitários, em um “encantamento” pelo outro que perdura até hoje.
Representantes de todos os países, gente de todas as raças, crentes de todas as religiões, altas patentes de todos os exércitos, ministros, heróis, aventureiros, já passaram por Natal, encruzilhados de milhões de destinos. As ruas da cidade, em certos dias, se enfeitam de tipos exóticos, de esquisitas indumentárias, de perfis latinos, anglo-saxônico, eslavos, semitas, negros e amarelos. (Djalma MARANHÃO apud SILVA, 1998: 66-67 apud 2010, 68).
Por outro lado, para o historiador Câmara Cascudo, esse era o destino histórico e mítico da cidade, seu devir, sonhado por Antônio de Souza em 1898, projetado por Eloy de Souza e Manoel Dantas, em 1909. O futuro tinha enfim chegado. A fazenda iluminada acordara de “seu sono três vezes secular” para se tornar o que sempre tinha sido: uma babel multicultural.
Entre os trabalhos acadêmicos mais recentes, apenas a professora Josimey Costa (SILVA, 1998) segue a perspectiva otimista de Cascudo. Giovana Oliveira (2008) e Flávia de Sá Pedreira (2005) são críticas em relação à entrada na modernidade e apresentam um saldo social e cultural negativo da presença americana em Natal.
Oliveira estima que a população da capital potiguar à época era de aproximadamente 50 mil habitantes e que entre 10 e 15 mil militares estrangeiros estiveram nela só no período de 1942 a 1943, quando o tráfego foi maior:
O impacto de viver sob a iminência de abrigar as batalhas da Segunda Guerra Mundial e a rapidez como as mudanças ocorreram no espaço da cidade certamente influíram na maneira como as elites políticas registraram o vivido, assim, as transformações trouxeram uma nova realidade que pode ter provocado mudanças na constituição da identidade da cidade, assim como as transformações podem ser responsabilizadas pelas intervenções ocorridas, pela cristalização de sua configuração espacial e pelo seu desenvolvimento econômico e social (OLIVEIRA, 2008: 19 apud GOMES NETO, 2010, 73).
Ao mesmo tempo em que se internacionalizava, a cidade também desenvolveu um processo de segregação social interna, em virtude da chegada de retirantes da seca que chegavam do interior atraídos pelo clima de prosperidade das elites com os soldados estrangeiros.
A concentração das vítimas das secas evitará que repitam os abusos até ontem verificados, e nesse sentido a polícia tomará medidas enérgicas de repressão, não consentindo que continue o espetáculo constrangedor de que vínhamos sendo testemunhas […]. Com estas providências [concentrar os imigrantes em palhoças, num acampamento afastado da cidade] o problema encontrou sua solução mais lógica e eficiente. (MEDIDAS NECESSÁRIAS apud OLIVEIRA: 195 apud GOMES NETO, 2010, 75)
Outra medida adotada pelo poder público local, na tentativa de amenizar a superlotação na cidade, foi enviar parte dos retirantes como ‘soldados da borracha’ para os seringais da Amazônia (PEREIRA SÁ, 2005: 110 apudGOMES NETO, 75).
Um aspecto importante nesse processo de aculturação das elites/segregação das classes populares é o carnaval. Não é por acaso que o Rio de Janeiro, Salvador e Recife têm as identidades culturais mais antropofágicas do Brasil, mas sim devido à inclusão das identidades negra e nativa em uma cultura festiva através do carnaval. Durante o estado novo, as escolas de samba e outras manifestações culturais populares foram proibidas (o catimbó, a capoeira, etc). Natal era um lugar de divertimento durante a guerra para os estrangeiros e as elites que lhes imitavam os costumes. Para a população mais pobre, no entanto, não havia nenhum tipo de diversão ou de entretenimento.
Nesse sentido, a construção da potiguaridade vai sendo mapeada e circunscrita dentro de um discurso da ausência, de falta. Vai sendo desenhado a partir do que ele não é, em detrimento daquilo que deveria ser. E, neste cenário, seja para projetar uma identidade – moderna e cosmopolita – ou para negar a existência dela, a presença estadunidense nestas plagas é sempre destacada. (2010, 81)
Principais livros sobre a influência cultural americana no RN nos anos 40
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AGUIAR, José Nazareno Moreira. Cidade em Black-out: crônicas referentes à 2a Guerra Mundial – 1939/45. Natal: EDUFRN, 1981.
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OLIVEIRA, Giovana Paiva de. A cidade e a guerra: a visão das elites sobre as transformações do espaço urbano da cidade do Natal na 2a Guerra Mundial. 2008. 1 v. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Urbano) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife.
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PEDREIRA, Flávia de Sá. Chiclete eu misturo com banana – Carnaval e cotidiano de guerra em Natal (1920-1945). Natal: EDUFRN, 2005.
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MELO, Protásio Pinheiro de. A contribuição norte-americana à vida natalense. Brasília: [s.n.], 1993.
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PINTO, Lenine. Os americanos em Natal. Natal: Sebo Vermelho, 2005.
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SILVA, Josimey Costa da. A palavra sobreposta: imagens contemporâneas da 2a. Guerra. Mundial. Mestrado, Ppgcs/UFRN, Natal, 1998.
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SIQUEIRA, Cleantho Homem de. Guerreiros Potiguares: O Rio Grande do Norte na 2a Guerra Mundial. Natal: EDUFRN, 2001.
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SMITH, Clyde. Trampolim para a Vitória. Natal: EDUFRN, 1992.
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5. A cidade do Sol: a identidade artificial
Natal desde então passa a encarnar a simbologia sol/mar, converte-se em Cidade do Sol e se consolida como destino turístico no cenário nacional, fortalecendo as políticas públicas para dotar a capital com uma maior infraestrutura turística nas áreas mais requisitadas. Tendo como consequência a segregação espacial da cidade. Surge a Natal espetáculo, cidade vitrine, cidade exportação. Toda identidade é construída, nas três últimas décadas o poder público e parte da iniciativa privada obtiveram êxito em nos definir como uma cidade vitrine, voltada para fora, mas e nós? Quando olhamos para dentro, o que enxergamos?[11]
Em sua investigação Gomes Neto analisa ainda o levantamento dos bens imateriais do patrimônio cultural do RN[12], procurando entender a relação deste acervo com “a produção de identidade espaciais”. Para ele, a soma das partes (os variados bens simbólicos catalogados) não forma um todo (uma identidade cultural homogênea).
A nosso ver, para se utilizar da metáfora do olhar, o relatório final não mais se apresenta uma contradição, uma aporia que, devido à pluralidade de elementos que envolvia, tornava difícil a emergência de uma representação para o potiguar. É o contrário. Ele faz todo o sentido. Se não oferece uma representação, digamos, coesa, é justamente por não existir essa coesão. Ele é mais um, embora isto não deva ser tomado de maneira pejorativa, entre tantos projetos suscitados no estado e também pelo estado, visando construir uma representação identitária para essa espacialidade. E esta, ao que parece, tem sido uma época profícua na emergência desses projetos, seja por acreditar que se devem oferecer respostas sobre quem ou o que é ser potiguar, seja pelos interesses econômicos que encerra, cujo argumento mais utilizado para justificá-los é uso comercial do turismo e as riquezas, os empregos, o desenvolvimento oriundos da exploração dessa atividade. (130-131)
Na ausência de um discurso homogêneo sobre a identidade potiguar, “mais que promovê-la, esses projetos parecem antes querer criá-la”. Aliás, a globalização parece ter tido um efeito contrário, desencadeando um movimento regionalista tardio, midiático e artificial. Por exemplo: a chegada da rede internacional do Carrefour, nos anos 90, à cidade levou aos supermercados locais, a financiar campanhas publicitárias com slogans regionalistas: “Orgulho de ser nordestino”, ou ainda, “Gente da terra da gente”. O recrudescimento das relações parentesco (das famílias locais defendendo seus privilégios diante de uma nova invasão estrangeira) podem ser observadas em vários eventos.
Finalmente, os natalenses começaram a se defender dos estrangeiros e não a festeja-los em detrimento de si. Mas, já era tarde! Com o turismo, muitas pessoas saíram dos grandes centros urbanos e vieram morar na cidade atraídos pela qualidade de vida e hoje a maioria dos residentes não são mais de nativos da cidade.
Encerrando as linhas últimas dessa escritura, pergunta-se: então, existe identidade potiguar? A indagação não é absurda, tendo vista toda ação que despendeu ao curso de mais de dois anos, tendo envolvido investimentos públicos, tomado tempo de atores sociais diversos e ocupado o espaço que poderia ter sido utilizado por outra pesquisa. Mas esperar e, sobretudo, fornecer respostas conclusivas a ela seriam ações demasiadamente arriscadas, precipitadas. Mesmo assim, há pelo menos duas maneiras de respondê-la. A primeira, mas curta e enganosamente mais fácil: não existe identidade potiguar. Mas há outra possível. Menos fatalista, mais complexa e, por natureza, mais movediça: a identidade potiguar é justamente não ter identidade. Ela existe porque se afirma um eu em contraposição a um outro, porque está eivada de alteridade. Dito de outra maneira, habitam tantas identidades no que se convencionou de identidade potiguar que por motivos de ordem variada, não se construiu um discurso homogêneo sobre ela, apesar das tentativas difícil de serem enumeradas. (p. 140)
E de fato, ao longo de sua história, pode-se perceber que mais do que uma ‘falta de identidade’, Natal sofre de ‘excesso de identidade’. A cidade coleciona várias alcunhas: cidade presépio (em virtude do simbolismo de fundação); Nova Amsterdã (durante o período holandês); ‘tal não há’ (devido ao seu isolamento colonial); província cosmopolita (pela elite rural republicana); encruzilhada do mundo, cidade trampolim da vitória, esquina do continente (pelo sua localização estratégica durante a guerra); e, finalmente, Cidade do Sol (sua identidade publicitária produzida pelo contexto turístico).
Será que os potiguares não se imaginam pertencentes a uma comunidade, que as pessoas não se sentem representadas por uma identidade? A globalização e a internet permitem a participação em uma multiplicidade de novas comunidades de pertencimento não locais, compartilhando diferentes formas de ser e estar no mundo. Há um sentimento de pertencimento mútuo vinculando esses indivíduos a essas novas comunidades de referência, mas isto não significa necessariamente uma alienação da comunidade local. Um estudo do caso da identidade cultural híbrida de Natal pode ajudar a entender vários aspectos do conceito de identidade cultural na globalização.
6. A noção de identidade cultural
É possível uma cidade não ter identidade cultural? Não. E ter várias, escondendo assim seu vazio? Também não. Essas opções são metáforas poéticas, absurdos conceituais do ponto de vista da teoria sociológica.
A identidade é uma luta simultânea contra a dissolução e a fragmentação; uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa a ser devorado … (BAUMAN, 2005, p. 83-84).
Há um grande número de teóricos que definem ‘Identidade’. Existem duas concepções distintas do conceito: a identidade social e a autoidentidade. A primeira se refere às características atribuídas a um indivíduo pelos outros, em vários níveis (a nacionalidade, a classe social, a profissão). A identidade aqui é compreendida como um sistema de representação das relações entre indivíduos e grupos, que envolve a partilha de bens simbólicos (a língua, a religião, as artes, o trabalho, os esportes, as festas) e a exclusão de outras características. A identidade social é o social refletido em cada indivíduo ou o conjunto de coerções e restrições modeladoras da subjetividade. Este conceito é utilizado pela sociologia durkheiniana e pelo estruturalismo.
Já a autoidentidade (ou identidade pessoal) é uma imagem que atribuímos a nós mesmos e à nossa relação individual com a sociedade e com meio ambiente. E esse diálogo do mundo interior com o exterior molda a identidade do sujeito que se forma a partir de suas escolhas no decorrer da vida. A sociologia compreensiva weberiana e seus diferentes seguidores (Schult, Goffman, Giddens, entre outros) é a principal adepta dessa definição menos determinista.
A ‘identidade cultural’ é resultante de uma dialética entre a identidade social imposta e a autoidentidade criativa, entre as estruturas objetivas e a imaginação. Há também um consenso de que as identidades eram mais espaciais e fixas; porém, com a globalização, as regiões passaram a interagir mais e as identidades parcialmente se desterritorializaram. Bauman (2005, 30) afirma que a questão da identidade só se coloca a partir do aumento do intercâmbio cultural e do declínio da identidade geográfica.
Até os anos 70, o imperialismo cultural e a destruição das identidades locais foram amplamente denunciadas por autores marxistas simpáticos a noção de cultura popular. Bourdieu (2007) afirma que os meios de comunicação, principalmente a TV, está promovendo uma padronização cultural em massa, num ato expresso de violência simbólica. Nos anos 80 e 90, Stuart Hall (2002) contesta essa tese de que a globalização promova a padronização cultural em massa, ressaltando que os indivíduos não são consumidores passivos e que é preciso considerar os usos e apropriações que eles fazem dos bens culturais. E a proatividade dos consumidores teria como consequência um mundo de culturas heterogêneas e híbridas (CANCLINI, 2000).
Assim, a globalização não é uma homogeneização das representações culturais e identitárias locais. O que está em curso é um redimensionamento, ou fragmentação dessas identidades, até então tidas como fechadas e homogêneas. Uma cultura será mais ou menos homogênea em função da proatividade de seus adeptos. Uma cultura de pessoas passivas será facilmente uniformizada pela globalização cultural, enquanto uma cultura de pessoas participativas preserva suas tradições. Porém, na prática, todas as culturas são ‘glocais’, isto é híbridas em diferentes graus de combinação.
Existem os dois extremos: há locais que foram completamente colonizados, em que seus habitantes não têm nenhuma caraterística cultural que os defina e diferencie dos outros. Como também há locais em que a preservação da identidade territorial colide com valores universais[13].
Mas, há também um terceiro termo, resultante da inversão dialética entre os extremos, entre a identidade uniformizada pela cultura global (em que os agentes são passivos) e a identidade regional forte (em que os agentes são ativos): a identidade antropofágica. O movimento armorial e o mangue-beat são exemplos da resiliência e da adaptação criativa da cultura pernambucana com a cultura global. No caso da identidade da cidade de Natal, não se pode falar de antropofagia, nem de identidade regional forte. A passividade dos natalenses em relação à sua autoidentidade (a capacidade de se auto definir), fez com que a identidade social imposta (a definição através do outro) prevalecesse.
7. Dispositivo goiamum
Natal parece cidade de partida, nunca de chegada. Ou se chega para partir depois. Se visita, portanto. É que nada aqui dura muito. Bares da moda, bandas da moda, estéticas da moda. Diógenes da Cunha Lima já poetizou que na Ribeira só o que passa, permanece. Natal toda guarda esse princípio. (…) Talvez sejam as dunas móveis onde nada se sustenta. Talvez seja a extensão litorânea com o além-mar a apontar sempre novas possibilidades. Talvez seja a saudade eterna dos norte-americanos que vieram, chacoalharam a cidade e foram embora em debandada. Fato é que Natal vive de história e imaginário, de nostalgia e ilusão. (…) Natal vive do ontem. Na política coronelista. Na economia atrasada. Nos movimentos sociais torpes. Vive de lendas. Da presença de Exupery. Da Cidade Espacial de Manoel Dantas. Da cidade cosmopolita. O escritor Pablo Capistrano foi certeiro: “Natal é cidade formada por matutos cosmopolitas e sertanejos que moram na praia”. E François Silvestre comprova: “O mapa do RN se parece muito mais com um caranguejo, mas não, queremos ser o elefante”.[14]
Entre as imagens autodepreciativas que os natalenses utilizam para explicar seu modo de ser, há a afirmação de que as pessoas se comportam como goiamuns presos no cesto. Quando um tenta sair da balaio, se destacando do coletivo, outros o puxam de volta, como se dissessem “é o melhor o fracasso de todos que a vitória de um”. Alguns denominam essa prática “pagar três mil para que o outro não ganhe trinta” (de perder tempo e recursos para que seus iguais não conquistem autonomia do grupo) ou ainda de síndrome de caranguejo. Prefiro pensar que se trata de um dispositivo[15], uma configuração do inconsciente grupal e não como uma patologia, nem muito menos como uma ‘falta’ de identidade cultural.
Outra forma de pensar seria dizer que o encantamento pelo outro e a auto depreciação do local tornaram-se um habitus(BOURDIEU, 2007), “uma ação automatizada como prática social”[16], que continuou a se perpetuar e a reproduzir um comportamento xenólatra (antônimo de xenófobo), cada vez mais reforçado pelas situações que gerou.
Os conceitos de ‘dispositivo’ e de ‘habitus’ são melhores para descrever o complexo cultural de Natal do que a noção de ‘ausência de identidade cultura’, porque eles não o eternizam do ponto de vista estrutural. Uma Identidade Cultural de uma cidade é uma construção histórica de longo prazo, uma estrutura feita de memória coletiva e de esquecimento durante séculos. Por isso, é muito difícil de ser modificada ou descontruída.
Já as noções de dispositivo e de habitus permitem compreender o complexo cultural de Natal como a formação de um padrão cognitivo semi consciente, que tanto pode ser vivido de forma passiva quanto também ser transformado, a partir de suas características. Essa forma de pensar permite a possibilidade de uma virada antropofágica: que a cultura local se reinvente através da global e que a identidade seja um projeto em aberto. A cultura antropofágica seria uma adaptação criativa (uma resiliência) dos colonizados frente ao colonizador, um equilíbrio dinâmico entre a identidade social atribuída por outros e a autoidentidade.
Essa possibilidade é que anima sobretudo Câmara Cascudo e Josimey Costa: de que nossa natureza antropofágica determinará nosso destino cosmopolita; de que esse foi, é e será nosso devir. Natal sempre foi habitada por estrangeiros, ou melhor, somos todos estrangeiros ou descendentes de estrangeiros. Essa é nossa natureza, esse é nosso destino.
Não se trata de revisitar a Natal provinciana, ruminar arcaísmos históricos, mas de construir uma identidade que nos inclua, sem renegar a cidade cosmopolita que nos tornamos nas últimas décadas. Vejo uma pulsão criativa nos jovens frutos dessa reorganização espacial ocorrida nesse período, cujo principal núcleo irradiador parte de instituições de ensino como UFRN e IFRN, que precisa consolidar-se em uma alternativa ao projeto de cidade para gringo ver. Além disso, há um anseio por mudança advindo desses jovens, que se refletiu na primavera natalense em 2011, quando ocuparam a Câmara Municipal e articularam o Revolta do Busão posteriormente, servindo de exemplo para Junho de 2013 no Brasil.
Mas há uma luta maior, uma grande política, ela é sobretudo cultural, esses jovens precisam ocupar os veículos culturais, construir o imaginário da cidade que queremos, para além da cidade exportação. […]
Há uma geração talentosa de músicos, atrizes, escritor(a)es, que produziriam excelentes resultados se articulados em um mesmo movimento de exaltação da cena local. Não se trata meramente de criar um mercado consumidor local para nossos artistas – o que é fundamental, mas de criar uma cena cultural que desloque o nosso imaginário para além da vocação turística.
Não podemos encarar a cidade apenas em seu aspecto natural, como mera atração, nas nossas inegáveis belezas naturais, nem tampouco na questão material ou comercial; para além das conveniências particulares e comerciais, precisamos estabelecer um bem público, nossa alma. Ela reside nas ruas, nos botecos, da ponte pra lá, nos rolés, na fala, no jeito. Ela precisa não apenas ser captada, mas (re)inventada. Para além da cidade que se mostra, precisamos antes de tudo criar a Natal que queremos.
Túlio Madson Por uma identidade natalense para além do turismo, Carta Potiguar, maio de 2016.
Por último, resta dizer que o ‘dispositivo goiamum’ é um complexo cultural de relações de micro poder específicas da cidade do Natal, mas, ao mesmo tempo, é também um microcosmo singular da cultura brasileira como um todo, em que algumas características de nossa identidade nacional são ampliadas, como é o caso da cordialidade, definida por Buarque de Holanda (1987)[17]. O estudo a respeito do assunto, assim, está muito distante de ser esgotado, tanto do ponto de vista teórico como do da própria vida cultural da cidade que segue em transformação.
Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo. Tradução: Nilceia ValdatiRevista Outra travessia no. 5, páginas 09-16. Ilha de Santa Catarina – 2° semestre de 2005.
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida. RJ: Jorge Zahar, 2005.
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2007.
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 2000 (Ensaios Latino-americanos, 1).
EMERENCIANO, João Gothardo Dantas (org.). Natal Não-Há-Tal: Aspectos da História da Cidade do Natal. Natal: Secretaria de Meio Ambiente e Urbanismo/Departamento de Informação, Pesquisa e Estatística, 2007.
FELIPE, José Lacerda Alves. A (re)invenção do lugar: Os Rosados e o “país de Mossoró”. João Pessoa: Ed. Grafset, 2001.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Coleção Documentos Brasileiros. 19ª edição. Prefácio de Antônio Cândido. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.
JOURDAIN, Anne; NAULIN, Sidonie. A teoria de Pierre Bourdieu e seus usos sociológicos. Petropolis, Vozes, 2017.
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. A penúltima versão do Seridó: uma história do regionalismo seriodoense. Natal/RN: Ed. Sebo Vermelho, 2005.
PIRES, Maria Idalina. Resistência indígena nos sertões nordestinos no pós-conquista territorial: legislação, conflito e negociação nas vilas pombalinas. Recife: O Autor, 2004. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. História, 2004.
SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. (Orgs.)Epistemologias do Sul. São Paulo; Editora Cortez. 2010.
RIBEIRO, Darcy – O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
[1] GOMES NETO, João Maurício. Entre a ausência declarada e a presença reclamada: a identidade potiguar em questão. 150 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. CCHLA, Programa de Pós-graduação em História, Natal, 2010.
[2] Professor do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia (UFRN).
[3] EMERENCIANO, João Gothardo Dantas (org.). Natal Não-Há-Tal: Aspectos da História da Cidade do Natal. Natal: Secretaria de Meio Ambiente e Urbanismo, 2007.
[4] Mas, há controvérsias. Para Rocha Pombo, a Vila dos Reis foi fundada em 24 de dezembro de 1599 por Jerônimo de Albuquerque (filho) e o lugarejo só atingiu o status de cidade, em 06 de janeiro de 1611.Para não contrariar ninguém comemora-se o aniversário da cidade durante os doze dias entre as duas datas (Natal e o dia de Reis), em um projeto da prefeitura chamado ‘Natal em Natal’.
[5] Sobre as identidades dessas regiões: MACÊDO (2005) sobre o Seridó; e FELIPE (2001) sobre Mossoró.
[6] A antropofagia é enunciada por Darcy Ribeiro, no livro O Povo Brasileiro (1996), como uma forma singular de colonização, que não segue nem o padrão de assimilação do colonizador nem o padrão de resistência cultural à colonização.
[7] Mártires de Cunhaú e Uruaçu ou Protomártires do Brasil, é o título dado pela Igreja Católica aos trinta católicos martirizados, no interior do Rio Grande do Norte. Foram vítimas de dois morticínios, ambos no ano de 1645, no contexto das invasões holandesas no Brasil. No dia 23 de março de 2017 o Papa Francisco autorizou a canonização dos trinta mártires do Rio Grande do Norte. A canonização ocorreu em 15 de outubro de 2017. No dia 3 de outubro, a lei Nº 8.913/2006 instituiu a data como feriado estadual.
[8] O extermínio da nação Tapuia é conhecido por Guerra do Recôncavo (em menção ao recôncavo baiano, onde aconteceram as primeiras lutas armadas), Guerra do Bárbaros (em referência à região do Açu, no Rio Grande do Norte, onde ocorreram os principais conflitos) e Confederação dos Cariris (por terem sido esses indígenas um dos mais combatentes). ‘Tapuia’ é nome genérico e pejorativo que os índios tupi (potiguares e tabajaras) davam aos seus rivais de origem não-tupi, que se aliaram aos holandeses e impediam a colonização do sertão. A guerra de extermínio durou de 1650 e 1720, e cobriu uma área que correspondia a um território da Bahia até o Maranhão. A historiografia do RN limita o genocídio dos Cariris, no vale do Açu, mas os estudos atuais (PIRES, 2004) demonstram que o conflito, além dos índios Cariri, envolveu ainda os Jê, os Tarairiu, os Sucurú, os Bultrim, os Ariu, os Pega, os Panati, os Corema, os Paiacu, os Janduí, os Tremembé, os Icó, os Carateú, os Carati, os Pajok, os Aponorijon e os Gurgueia.
[9] Pseudônimo de Antônio José de Melo e Souza, deputado e senador, governou o estado em duas oportunidades e também atuou como Procurador da República, além de sócio fundador do Instituto Histórico e Geográfico/RN, escritor, jornalista, poeta, historiador, contista e romancista.
[10] Em homenagem a Manoel Dantas, os jornalistas Adriano de Souza e Flávia Assad lançaram a revista Perigo Iminente (nome dado aos ciclopes de areia), sobre a identidade cultural de Natal. <https://issuu.com/flordosal/docs/perigo_iminente__2>
[11] Túlio Madson. Por uma identidade natalense para além do turismo, Carta Potiguar, maio de 2016. <http://www.cartapotiguar.com.br/2016/05/24/por-uma-identidade-natalense-para-alem-do-turismo/> Faz, de forma resumida, um precioso relato histórico do desenvolvimento cultural de Natal em relação ao turismo a partir dos anos 60, destacando a questão da identidade da cidade.
[12] FUNDAÇÃO JOSÉ AUGUSTO/FJA. Projeto Patrimônio Cultural Potiguar em Seis Tempos. Disponível em: <http://www.fja.rn.gov.br/imaterial/patrimonioimaterial/docs/relatorio_final.pdf>, 15/02/2007.
[13] É preciso encontrar um meio termo entre a proteção das identidades de culturas locais e os direitos humanos, entre o etnocentrismo universalista e o relativismo cultural. As epistemologias do sul (SANTOS; MENESES, 2010) inserem a noção de ‘relatividade do observador em relação a uma referência em comum’ oriunda da física teórica e de complexidade cultural para caracterizar a diversidade e a singularidade das identidades culturais
[14] Natal: Utopias para uma cidade imaginária de cosmopolitas matutos, Papocultura. Fevereiro, 2017. <http://papocultura.com.br/natal-cosmopolita/>
[15] E o que é um dispositivo? Resumindo AGAMBEN, 2005: Um conjunto heterogêneo de pessoas, coisas e signos – uma rede formada por acontecimentos recorrentes em uma determinada correlação de forças – que formam uma estratégia dentro de uma relação de poder microfísico. (MBG)
[16] Os especialistas (JOURDAIN, 2017, 49-53) destacam três conceitos de habitus em Bourdieu, no decorrer da evolução do seu pensamento: o habitus determinista do livro A Reprodução (“a interiorização do exterior e a exteriorização do interior”); o habitus-inércia como uma força de resistência à mudanças em várias obras intermediárias; e, finalmente, o habitus probabilístico, formado por ‘esquemas de percepção, de julgamento e de comportamento’ incorporados semi conscientemente pelos agentes de A Distinção (2007). Essa última concepção de habitus é adequada para pensar o complexo cultural de Natal.
[17] A valorização exacerbada da personalidade, dos favores pessoais e políticos, do nepotismo e do clientelismo, do espectro vivo da família patriarcal acima das instituições modernas, da incapacidade cultural para vida pública e para igualdade jurídica entre indivíduos em virtude da afetividade e das relações pessoais.