Berilo Wanderley(1934-1979) foi jornalista, professor universitário, promotor público, crítico literário e de cinema e boêmio.
Destacou -se como cronista, terreno em que pôde se aventurar enquanto assinou a coluna “Revista da Cidade” no jornal Tribuna do Norte.
Segundo Woden Madruga, ex-presidente da Fundação José Augusto, Berilo foi “um escritor e ao mesmo tempo jornalista que sabia esgrimar a arte da palavra, como fenômeno estético, preocupado não somente na empatia do leitor, mas, também, em lhe oferecer o registro dos fatos reais, descrevendo os acontecimentos que ocorriam no espaço provinciano ou àqueles outros, além fronteiras, que normalmente repercutiam no universo local” ; “um cronista urbano, anotando os pequenos dramas e comédias da cidade, retratando heróis humilde – formidável criador de tipos – caricaturando poderosos e prepotentes que nunca escapavam à sua crítica e à ironia fina, capazes de levantar o roupão que veste o ridículo desses falsos deuses. Foi um satírico incansável de tipos e costumes.”
Assim, podemos dizer que a obra de Berilo é tal qual a proposta do Museu, um registro de afetos e memórias da cidade de Natal. Ficará registrada a seguir crônica presente no livro póstumo “O Menino e Seu Pai Caçador”, publicado em 1980 pela Fundação José Augusto e cuja ilustração da capa é de autoria de Newton Navarro, primo de Berilo. A crônica, intitulada “Matéria de Memória”, é um relato de como eram as festas de Nossa Senhora da Apresentação na Praça André de Albuquerque.
MATÉRIA DE MEMÓRIA
21 de novembro. Nossa Senhora da Apresentação. A Festa da Padroeira morreu, em nome do progresso. Falo daquele festejo de sabor tradicional, que carregava gente de todas as partes da cidade do Natal para a Praça André de Albuquerque, onde se estendiam barracas de jogos e prendas, carrosséis, rodas-gigantes, teatro de mamulengos, tabuleiros de pé-de-moleque, barquinhos de papel-de-seda cheios de cores ocultando em seu bojo farinha de castanha de caju, capilé, sequilho, grude, toda uma vasta comidaria que fartava a barriga dos rapazes e das moças antes de sairem em namoro para as áreas mais escuras dos arredores.
Tudo isto é, hoje, matéria de folclore. Os barquinhos de castanha, por exemplo. Eram presença característica dessas festas populares de santos, antigas, como a da Apresentação, a dos Santos Reis. Dias antes de elas começarem as mulheres dos bairros das Rocas, do Alecrim, entravam a cortar papel-de-seda colorido, num artesanato paciente e humilde que tecia rendados bandeirinhas para enfeitar os barquinhos de papelão de caixa de sapato. Depois, vinha a farinha das castanhas assadas no fundo do quintal, que recebia porções de farinha de mandioca e açúcar. O resultado ia parar dentro dos barquinhos enfeitados e, daí, no gosto das crianças e da rapaziada namoradeira que dava de presente às moças aqueles barquinhos. Muito casamento nasceu de presente em Festa da Apresentação. Matéria que hoje está nos livros de Câmara Cascudo e Veríssimo de Melo.
A praça votava a parte profana da data marcada com vermelho no calendário municipal, enquanto dentro da igreja se desenrolava o novenário, com terços, rezas e cantorias jorrando das bocas beatas de poucos dentes e muita fé. Não se sabia se havia mais gente dentro ou fora da igreja, porque não havia telenovelas para atrapalhar e todo mundo saía de casa, para render homenagens à santa padroeira. Tempos de religiosidade simples, embebida de tradição. Ainda o alcancei, menino de calças curtas e suspensórios, babando por um barquinho de farinha de castanha, por uma corrida no carrossel. Tempo de brilhantina no cabelo, mas sem os arreganhos travoltísticos. Tempo sem sofisticação, que virou matéria de memória.